Não se pode começar uma reflexão sobre corridas de toiros sem perceber o seu significado mais profundo que se complexifica em três grandes noções: identidade, estética e natureza. As três noções são distintas entre si e apresentam graus de importância ligeiramente diferentes. Ver-se-á uma a uma de forma breve nos próximos textos, mas suficiente para provocar alguma reflexão. A primeira a ser analisada será a identidade.
A corrida de toiros, no seu sentido mais cru, é uma batalha entre a razão humana – através da técnica aprimorada – e o poder da natureza, personificado no toiro – visível na força do animal e nos seus movimentos nobres e bravos. Nesta batalha, o homem dispõe a sua vida para enfrentar irrepreensivelmente um animal que tudo fará para não morrer e matar quem o ousar enfrentar.
A importância do espetáculo prende-se com o valor da identidade humana, porque nele se descobre aquilo que o homem é, através dos limites a que é levado e da a afirmação daquilo que o define em contraste com o toiro. A razão faz do homem, por natureza, um animal superior. Os seres humanos não são os mais fortes, não são os maiores, não são os mais brutos, nem os mais fatais. No entanto, são os únicos que têm inteligência, liberdade e imaginação, o que os permite dispor da natureza e usá-la bem para fins bons.
A cultura é o conjunto de costumes que ao longo do tempo são mantidos e promovidos por caracterizarem e identificarem aquilo que é determinado povo. Existir uma forma cultural, tão peculiar, que mostra de cada vez que o homem é mais que força, instinto e bravura é fundamental. Como se poderia deixar de fora um espetáculo que, para além do seu sentido histórico, fala daquilo que distingue o homem dos demais seres do mundo?
Isto tem tudo a ver com a felicidade, porque esta não pode ser alcançada se não for determinada. A felicidade é um conceito formal, ou seja, por si só é indeterminada. Assim, o grande desafio da vida é desformalizar o conceito de felicidade, isto é, perceber em cada momento o que nos leva à felicidade. Numa corrida de toiros pode haver uma aproximação à felicidade, porque revela-se o homem numa forma única, pelo menos em espetáculos. É na batalha, no ser testado, numa prova difícil que muitas vezes se descobre aquilo que se é. Só se percebe aquilo para o qual se foi feito, se se souber quem se é, para, assim, um dia se poder cumprir aquilo para o qual se nasceu. Tudo isto se pode perceber, como participante ou como espectador, apesar de tal acontecer de formas diferentes.